quarta-feira, 28 de dezembro de 2005

O Bailarino de grafite

Conhecemo-nos no Chiado, eu tinha a idade necessária para tirar a carta, e ele estava no seu primeiro quarto de século. Fui comprar um álbum de Terence Trent D'arby, na antiga Melodia do Chiado, e lá estava ele atrás do balcão, um ar algo britânico, com umas pestanas enormes em volta de uns olhos muito muito escuros.
Não demorou muito tempo, escolhi o CD, fui ao balcão, quando quis pagar ele entregou-me um pequeno papel com um bailarino desenhado em grafite e, simplesmente convidou-me para irmos nessa mesma noite ao Teatro, não pude fazer muito, disse-lhe que ia a casa com a intenção de não voltar, mas ele saiu comigo da loja para ir ao Teatro Nacional D. Maria II para comprar de imediato os bilhetes para a peça Germania3 de Heiner Müller, não resisti e voltei.
Passamos algum tempo juntos, tempo de qualidade, o Pedro era único, descobri que tinha um comportamento particular, algo excêntrico até, vivia as coisa como quem não se importa, como se realmente o tempo não existisse, mas tornava cada dia numa viagem na ao centro da terra......

Um dia quando estávamos numa qualquer passadeira na baixa, e o sinal estava fechado para peões, ele aproximou vertiginosamente a cara de um autocarro em movimento, hábito antigo, faz-me sentir mais vivo......disse-me calmamente.

No fim de todas as nossas noites entregou-me outro bilhete:

ONTEM COMECEI
[Heiner Müller - Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael]


ONTEM COMECEI
A matar-te meu amor
Agora amo
O teu cadáver
Quando eu estiver morto
O meu pó gritará por ti

Guardei o bilhete junto com o desenho e nunca mais vi o Pedro, ontem numa passadeira no Saldanha lembrei-me dele, cerrei as mãos, fechei os olhos, aproximei a cara senti o vento violento passar, abri os olhos, sorri, e o sinal ficou verde.

4 comentários:

rspiff disse...

Isto que tu contas parece tão verdadeiro que quase que podia ser inventado :-)

Ah, desculpa a pergunta, mas o que querias dizer com "Gosto de pessoas-mesmo-pessoas"?

E podes voltar sempre ao meu cantinho, vou escrevendo devagar, mas alguma coisa vai surgindo...

mfc disse...

As pessoas passam na nossa vida da mesma forma que nós passamos na vida delas; quem sabe, nesse mesmo momento, o Pedro não estaria a encostar a cara oa vento do autocarro e a pensar em ti, a pensar porque é que te tinha deixado de ver.

E se calhar procura-te.

Kiau Liang disse...

A vida tem o seu curso natural , não lamento a saida brusca do Pedro apenas gosto de relembrar momentos e pessoas bonitas que tive ou/e ainda tenho a sorte de conhecer

Unknown disse...

Reencontrei há muito pouco tempo este álbum... e que bem soube voltar a ouvi-lo...

parece que o ouvi pela primeira vez!